Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Quando chego a casa, ele está a sair para ir passear o cão.
Pergunto-lhe "só agora?"
Tira os phones do ouvido enquanto me olha. Repito "só agora?".
"E então?" É a resposta acompanhada de um encolher de ombros.
Subo as escadas. São 19:30, ainda bem que fiz almoço a contar com o jantar.
Entro em casa e lá está a mãe, de volta dos tachos. 88 anos. Trabalhou dos 9 aos 70 para agora ainda andar de volta dos tachos.
"Já estás a aquecer o jantar?" Atiro com um sorriso e um beijo.
"A aquecer, não. A fazer"
Em resposta à minha pergunta não verbalizada mostra-me as sobras do almoço. Pouco mais que nada.
"Eu trato do jantar. Vai-te sentar" digo, enquanto sinto um desconforto a crescer em mim.
"Deixa, eu faço uns hambúrgueres. Vai pousar as coisas."
Aceito a sugestão. Preciso urgentemente de ir à casa de banho.
Chegada lá, escorrego. Paredes, chão, móveis, tudo escorre água, sinal de um banho prolongado. O papel higiénico molhado, sem grande utilidade
Volto para dentro. Cruzo-me com ele, que entretanto voltou, e refilo.
"Que queres? Foi um banho de 10 minutos, mas tive que esperar que a água aquecesse bem". Novo encolher de ombros.
Sigo para a cozinha.
"Tiveste muito frio no trabalho?" Minha mãe continua a adivinhar os meus dias.
"Sim. Liguei o ar condicionado, acabei por o pôr nos 30. Mas há sempre gente a entrar e a sair. E na verdade,aquilo é uma garagem. Nunca aquece"
Lembro o momento em que fui à casa de banho aquecer as mãos no secador, para conseguir voltar a mexe-las, sem dor.
"Não queres ir tomar um duche, para aquecer?"
"Não. O miúdo precisa jantar cedo, amanhã é dia de escola. E eu ainda tenho que ir ao computador adiantar alguns trabalhos"
Amanhã é dia de trabalho. Pelo menos para alguns, penso enquanto o ouço lá dentro.
Ele põe a mesa, com a ajuda do miúdo. Nós levamos o jantar para a mesa.
Como o jantar calada. Cansada. Sem grande apetite. O frio abre o apetite, mas o cansaço atenua-o.
Como uma canja, um ovo estrelado, uma laranja. Sinto o calor a chegar à face.
Acabamos de jantar e ele levanta-se. Incomodado por eu refilar.
Leva os tachos para a cozinha, deixa-os sobre a bancada, faz um café e abre a janela para fumar, enquanto brinca com o telemóvel. Volto a gelar. Por dentro e por fora.
Arrumo a cozinha com a ajuda da minha mãe e do miúdo. Este, esperto, pergunta-me se estou bem.
Digo que sim, mas sinto-me a rebentar por dentro. Penso nas paredes da casa de banho a escorrer água e penso que é assim que estou por dentro. A escorrer sangue pelas paredes do meu ser.
O aquecimento ligado tira-me a vontade de ir para o computador. "Levanto-me mais cedo amanhã e trato de tudo" penso. Preciso descansar.
"Anda. Guardei aqui o lugar frente ao aquecimento para ti" diz o miúdo.
Sorrio.
"Aproveita-o, enquanto vou lá dentro vestir qualquer coisa mais confortável".
No quarto, começo a despir-me. Está frio.
Estou gelada por dentro, mais que por fora.
Que inveja que tenho, naquele momento. Das mulheres que choram. Já meia despida deixo-me ficar deitada sobre a cama.
Que é isto, a vida? Vale mesmo a pena?
Penso nele. Dei-lhe a minha juventude. A ele e a cada um dos outros. Só que os outros fizeram-se à vida. Ele continua aqui, a jogar dia e noite. Esqueceu-se de viver.
Ou fui eu que me esqueci de viver. De qualquer forma, agora já vou tarde.
Respiro fundo. Lá dentro ouço o miúdo. Sei a minha mãe preocupada com a minha demora.
Acabo de me despir. Visto um pijama quente, o roupão, pego num livro e vou para a sala.
Amanhã também é dia.
Igual a tantos outros dias de tantas outras pessoas.
Quiquera