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Gosto destas noites, a apresentarem o inverno.
Tenho, por vezes, a sensação que me acolhem, que me alimentam nos seus ventos.
Esta noite fui dar um passeio pelo bairro.
O silencio reinava, nas casas, nas ruas, nos cafés.
O silencio do fim de dia, do fim de semana.
Sentei-me num banco molhado, a ouvir o vento nas árvores, a olhar o seu vai e vem.
A rua como extensão do meu silêncio, devolve a noção de pertença.
Ultimamente, na minha casa, reina o silêncio.
Não está mais vazia. Não andamos zangados.
Apenas estamos, todos, vazios de palavras.
O silêncio é tão completo que nem a musica, habitual e fiel companhia se faz ouvir.
Já o disse, não é um silêncio zangado. Mas também não é tranquilo. É vazio.
Como se os recentes e longos tempos de confinamento nos tivessem despido de ideias, palavras, ou vontade de falar.
De vez em quando alguém quebra o silêncio e lança um tema, que é adoptado por uns momentos, para voltarmos ao silêncio com a convicção reforçada do vazio das palavras.
E, sem luta, deixamos o vazio ocupar o lugar onde antes se partilhavam histórias, sonhos, ideias, esperanças ou quem somos.
Quase acredito que um dia nos fundiremos com as paredes que nos rodeiam, acimentados no silêncio da estrutura.
Como se foi tornando hábito, aproveito o final de tarde de domingo para me sentar no escritório da casa a preparar os trabalhos da semana.
Como banda sonora hoje optei pela música brasileira.
Entretanto a necessidade de um copo de água leva-me à cozinha, mas, para contrariar hábitos, regresso ao escritório pela varanda.
Num repente o luar de uma lua ainda incompleta, traz-me a lembrança da esperança em sonhos nunca atingidos.
Foi curioso, uma espécie de memória mas sem associação a nada de específico.
A recordação de um sentir que me abandonou há alguns anos, talvez.
Acabei por me encostar ao parapeito a olhar o silêncio do bairro, a sentir o cheiro da noite húmida, a ouvir a cor da vida dos vizinhos que me alcança pelas suas janelas entreabertas.
Lembrei sonhos dos meus 15, 20, 30, 40 anos.
Num exercício inconsciente, deixei-me inundar daquela nostalgia esquecida, de quem procura ainda acreditar.
Pela porta aberta do escritório, vinha o som suave do Samba da Bênção, tão a propósito.
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida
Palavras sábias, que só um poeta sabe encontrar.
Terminar o disco, regresso ao trabalho.
Com noção clara de algo em mim que já não é.
A ferida aberta de uma saudade que não se apaga.
Saudade de mim, de ti, de tanta coisa que já morreu
E da parte de mim que partiu com esse fim.
Quiquera
Lembram-se de, aqui há uns anos, se ter falado da geração nem-nem?
Jovens que nem estudavam nem trabalhavam? Jovens desenquadrados que não se reviam em nenhum caminho, que não vislumbravam um futuro e que, sem objectivos ou sonhos, deixavam-se vogar pela vida, a experimentar caminhos vários.
Embora as gerações anteriores também tenham vivido este fenómeno, a geração que está agora nos 30 tornou-o mais evidente, na região onde vivo. Em cada prédio havia pelo menos um nem nem. O que não era pouco.
Conheci vários desses jovens de perto. Ouvi as suas frustrações, as revoltas, as desilusões e ilusões.
Com o tempo vários redescobriram o seu lugar na vida, escrevendo a sua história à sua maneira. Uns voltaram aos estudos, outros ingressaram no mundo do trabalho, vários constituíram família.
Com mais ou menos sucesso pessoal (não falo de finanças mas de satisfação individual) começaram a redescobrir o seu posicionamento no mundo.
No entanto vários ficaram presos nesse limbo de ser nem nem. Dependentes de outros que, frequentemente, desistem deles, deixam passar os dias frente a um qualquer ecrã, a jogar às guerras, ao grand theft auto, a ver séries de anime, procurando refugio num mundo violentamente imaginário, onde são os heróis de uma qualquer vida virtual. Por vezes pouco comunicam para lá da tecnologia, não os vejo felizes.
Aflige-me esta fuga, esta ausência de objectivos, a desistência de si.
Como se algures no caminho tivessem apagado os sonhos e esperanças coloridas e passassem a ver o mundo em matizes de cinzento.
Desistentes de si.
Desistentes da vida.
Desistentes do amor.
Que é essencialmente a mesma coisa.
Caramba!
Onde ficou a minha capacidade de escrever a qualquer movimento?
Um sopro de vento, lançava-me palavras ao ouvido
e a mão, obediente, satisfazia o ímpeto.
Há dias questionei se a ligação entre o coração e a mão se teria calado.
Talvez a mão se tivesse feito desobediente.
Ao fim de algum tempo percebi que fui eu que fiquei surda
aos sons que me inspiravam.
Eles estão lá, mas poucos me dizem alguma coisa.
Continuo a ficar à janela ao fim do dia
a ouvir a despedida dos pássaros,
a loiça de cozinhas alheias,
o silenciar do bairro.
A receber a chuva nas mãos, caída dos beirais.
Mas tenho a sensação de que algo emudeceu em mim.
Talvez tenha compreendido finalmente.
O sonho que me inspirou não volta.
E o futuro parece-me igual ao que já foi.
Será isto envelhecer sem ser da idade?
Já comentei por aqui que tenho tendência a que me aconteçam coisas, digamos... parvas?
Desde ver peixes a morrer atropelados, a pombos que fazem corta mato por dentro do meu carro quando parada num semáforo, pássaros que embatem em alta velocidade nas janelas de casa, há de tudo um pouco.
Mas com humanos também vou coleccionando historietas inesperadas, que me arrancam grandes gargalhadas.
Ontem tive mais um desses episódios.
Há uns meses largos alguém, possivelmente num passo nocturno mal medido, partiu o vidro da porta de entrada do prédio onde vivo.
Como ninguém se acusou, eu e outra vizinha, com medo que aquilo cedesse em cima de alguma das crianças, passámos à fase de procura de alguém que fizesse a reparação.
Sendo vidro aramado o vidro não cai, mas vai estilhaçando tipo teia de aranha. E mais cedo ou mais tarde começam a soltar-se pontas afiadas.
O que aumentava o nosso desespero em não encontrar alguém que "agarrasse" o serviço.
Empresas referenciadas, anúncios de internet, papéis deixados na caixa de correio, tentávamos quem viesse pelo menos fazer um orçamento. Podia ser que se entusiasmasse.
Houve quem não respondesse; quem garantisse que vinha fazer o orçamento e não aparecia; quem aparecesse para tirar medidas e não dissesse mais nada. Imagino que o covid também tenha agravado a disponibilidade para este tipo de serviços.
Até que um conhecido nos dá um contacto cujo trabalho garantiu ser de excelente qualidade.
O senhor veio, tirou medidas e no dia seguinte mandou orçamento. Tudo impecável.
Nem regateámos. Combinámos logo a obra para o mais breve possível: dois dias depois, ou seja ontem.
Pensei "finalmente algo corre bem!"
A vizinha ficou responsável por receber a factura e verificar se ficava tudo bem, por eu continuar em quarentena profilática (não, não fui abrangida pelas novas medidas).
Veio o dia da obra e o senhor telefona a combinar a hora do serviço. Ah, parece que é mesmo desta!
Ao final da tarde, recebo contacto da vizinha:
- Estou?
- Estou, olha a obra está feita.
- A sério? E ficou tudo bem?
- Perfeito, parece-me.
- Que bom! (Respirei de alívio, que vidros partidos fazem-me nervos).
- Olha, só há um senão.
- Então? - Aqui começo a pensar "o vidro não é aramado; está a pedir mais dinheiro que o previsto" mas nada me prepararia para o que vinha a seguir.
- É que o vidro ficou muito bem montado, o trabalho perfeitíssimo, lindo mesmo. Mas no prédio em frente. O senhor enganou-se no número de porta...
Fizemos uma pausa de segundos e começámos a rir à gargalhada, em simultâneo.
Impossível não rir a imaginar a cara da vizinha em frente quando lhe tentaram entregar uma factura de um vidro que não tinham pedido para mudar. Nem sei se o vidro deles estava partido. Têm tido obras no prédio, é possível que estivesse. Ainda se devem estar a perguntar quem mandou substituir o vidro.
Quanto a nós, esperamos que amanhã ou depois o nosso seja substituído.
Mas, olhem, sempre posso dizer que, visto da minha janela, o trabalho parece bem feito.
Quiquera