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Por vezes a solidão afunda-se em nós, de uma forma que quase acreditamos que estamos bem, que estamos acompanhados.
De tanto fazermos diálogos internos, parece-nos que dialogamos com outros e perdemo-nos na dúvida se o diálogo imaginado foi, afinal real.
Mesmo acompanhados, a solidão esconde-se por trás dos nossos sorrisos, das nossas palavras, até mesmo das nossas gargalhadas.
Não se esconde por mal, mas pelo hábito da ausência das perguntas, do conhecimento que o outro não tem de nós.
Quem sou; o que desejo; para onde já não vou, agora que o tempo me foge.
Mais problemático, é que esta solidão feita de partilhas privadas de ouvinte, de diálogos calados, é o facto de ser viciante. Passa-se um encontro, dois, três... E de repente já nem toleramos perguntas. Sentimos que vêm fora do tempo. Já não há respostas disponíveis. Numa espécie de erro informático: "essa página já não está disponível".
E seguimos de sorriso sério, sem tristezas, com medos das perguntas que não foram feitas, das confissões que ficaram guardadas, poeirentas, na gaveta de uma qualquer falsa memória.
Há umas semanas recebi a notícia de uma pessoa que durante uns tempos foi um dos meus mentores.
Na minha vida tive dois mentores, ambos faleceram na mesma altura do ano, com 5 anos de separação.
O primeiro mentor foi alguém que me ensinou muito, que me ajudou a enfrentar épocas difíceis da minha vida. Curiosamente os nossos caminhos divergiram há muitos anos e na última vez que conversámos acusou-me de ser culpada de tal divergência. Ainda lembro a sua voz zangada "essa tua ética pessoal não te permite ser feliz".
É engraçado pensar que foi essa mesma ética pessoal que me levou ao meu segundo mentor.
Este segundo mentor foi alguém verdadeiramente essencial no meu percurso pessoal e profissional. Compreendiamo-nos na forma de ver a vida, a actualidade. Partilhávamos princípios éticos que nos guiavam nos passos profissionais e pessoais. Os nossos caminhos foram separados há uns anos, devido à sua morte excessivamente precoce.
A ambos estou enormemente grata. Foram muitas vezes um apoio essencial. Tinham pontos em que eram muito parecidos. Ambos procuravam mostrar que estavam disponíveis para mim e me ensinaram a ver o meu valor intrínseco, que tantas e tantas vezes desvalorizei.
A notícia da morte do meu primeiro mentor lembrou-me a dor da perda do segundo. Imaginei-os algures num universo paralelo a discutirem o meu caso. Algo me diz que não duraria nem cinco minutos a conversa. Dois homens carismáticos e charmosos à sua maneira, tão diferentes na postura, até mesmo na forma de vestir! Eis uma imagem que me faz sorrir.
Mas o que fica de fundo, na minha alma e no meu sentir, é a sensação de solidão que nos fica quando os nossos mentores desaparecem. Mesmo aqueles que o deixaram de ser. Uma espécie de segunda orfandade.
Talvez seja a noção da minha própria finitude.
Não sou crente. Não creio noutra vida. Mas pode vezes faço um exercício de imaginação em que após a minha morte reencontro algumas das pessoas que partiram antes de mim. Imagino os abraços, os sorrisos, as mão amigas sobre o meu ombro inexistente. E parece-me que quase os sinto realmente.
Até saber se existe algo do "lado de lá", irei contentar-me com estas ilusões ingénuas.
Hoje o dia acordou cinzento escuro.
Há algo neste dia de chuva e escuro que desperta em mim uma memória, mas não consigo saber de quê.
Algo que me entorpece e entristece, mas que fica lá escondido, por trás das actividades matinais, despertando em mim uma nostalgia de não sei o quê e que não sei de onde vem.
Eu gosto de dias de chuva.
Mas hoje apetecia-me esconder-me sob os cobertores. Ou deixar-me ficar no sofá com uma manta por companhia e talvez uma série na tv.
Ou talvez dormir. Dormir. Dormir.
Olhando pela janela tenho a clara ilusão de que me faço una com o cinzento lá fora.
E sonho-me nuvem cinzenta, diluída de ser.
Busco o teu silêncio,
a paz que só tu me poderás dar.
Vivo os dias lentamente,
em espera
espreitando as esquinas
sinto-o
te posso encontrar.
Trago o passo mais lento,
a mente mais frágil,
o coração endurecido pelos erros-dores passados,
numa memória esquecida nesta casa que jaz.
sem paredes
Anseio pelo teu braço
abraço
A cumplicidade que vem
da certeza de te encontrar.
Saí da garagem do trabalho, 7h da manhã.
Na minha frente um arco íris a avisar que vinha mais chuva.
Enquanto avançava na estrada o arco íris surgia cada vez mais brilhante. Completo.
A cada passo, parecia mudar de direcção. Ora mergulhava no mar, ora dava um novo colorido às casas.
Acabei por me desviar do caminho, seguindo-o. Não sei o que me deu. Se foi o cansaço, o sono, a tristeza, ou ser domingo.
Numa rua vazia, decidi estacionar o carro, num parque também ele vazio, e sair.
Senti as gotas grossas de chuva, enquanto o escurecer do céu fazia desaparecer o arco íris. Os pássaros cantavam nas árvores. Do carro, cuja porta deixei aberta e a chave na ignição, vinha o som de Absolute Beginners de David Bowie.
Pacifiquei-me.
Voltei para o carro e fui para casa dormir, levando no peito o momento em que a natureza me ofereceu um arco íris para me desviar do caminho habitual.
É uma das vantagens de sair do trabalho de manhã. Ter o vazio só para nós.
Quando éramos adolescentes, eu e T, numa espécie de filosofia conhecedora da vida, rematávamos as nossas conversas com uma frase mantra:
Life's a bitch and then you die
Dizíamos com o tom próprio dos 15 anos que achavam que já tinha percebido o mundo. Em certa medida não estávamos erradas.
A frase vinha de uma qualquer canção da qual não guardo memória nenhuma.
Acredito que tenha sido trazida por T.
Era a minha melhor amiga desde os 11 anos e ainda hoje dispo a minha alma sem pruridos perante os seus ouvidos e o seu olhar.
T e eu vivíamos no mesmo bairro, mas éramos de mundos diferentes. O que não importava nada. Cada uma alimentava-se do conhecimento da outra e com isso construíamos a noção do mundo.
T nas férias viajava enquanto eu ficava em casa a ajudar a cuidar dos meus sobrinhos.
De cada viagem trazia-me algo. Pequenos objectos - alguns ainda os tenho - mas acima de tudo as impressões de tudo o que tinha visto e sentido.
Dizia frequentemente
Estive num sítio que era a tua cara
E eu bebia sofregamente tudo o que me contava.
Adulta, viajei um pouco e estive em alguns dos sítios que referiu. Eram, efectivamente, a minha cara.
40 anos passaram. Eu e T continuamos em mundos diferentes.
Na semana passada almoçámos juntas.
Falámos de trabalho, da família. Do que vemos. Do que sentimos. Do que somos.
A dada altura, de alma despida, disse-lhe
A vida cansa-me
T no seu jeito honesto respondeu
Acredito
E não foi preciso dizer mais nada porque sei que sim. Que acredita e compreende.
Agradeço à vida ter-me trazido aquela rapariga alta e magra, de joelhos frequentemente escalavrados.
Somos dois mundos diferentes ligados pelo abraço da amizade.
Com ela o mantra fica mais leve
Life's a (little less) bitch and then you die
Quiquera
Enquanto estou aqui sentada, na hora final de uma noite de pouco trabalho, descubro em mim uma sensação de inexistência, de irrealidade.
De tanto escrever e apagar, concluo que nem sei como o explicar.
É como se me visse dentro do corpo de uma estranha, a quem observo, mas que não reconheço.
Penso que talvez esteja a ficar doida, ou simplesmente estou cansada. Afinal já é a terceira noite.
Mas... Esta sensação de não me reconhecer não é nova. É algo que cresceu com os anos. Alicerçada em comentários, elogios, criticas que me foram dadas, bem intencionadas, mas que aumentavam, alimentavam, está estranheza de mim em mim.
Quem terá razão? O que me vê de fora e diz o que vê, ou eu que comigo convivo a tempo inteiro, mas que sou incapaz de me reconhecer.
Talvez se fechar os olhos e mergulhar no escuro da minha noite interna, consiga reencontrar a minha voz, o meu cheiro. O meu ser.
Talvez. Quando puder.
Quiquera
Por vezes penso que a nossa vida não evoluiu assim tanto, em relação aos nossos pais. O que me lembra a canção de Elis Regina.
Estou numa fase de mudança laboral. E nestes últimos meses tenho esticado a corda, trabalhando muitas horas. A diferença para a vida dos meus pais, é que a minha ainda rende do ponto de vista económico.
Esta noite, há bocado, comecei a sonhar com férias e a pesquisar na internet. Entretanto, a chuva lembrou-me da roupa num estendal dentro de casa, com o desumidificador por baixo, a sugar a água. A máquina de secar avariou. O forno está nas últimas. O frigorífico está a começar a dar sinal...
As férias vão pelo cano, junto com a água do depósito do desumidificador. Retirei a roupa seca, estendi a que ainda estava por secar. Enquanto isso pensei nas refeições de amanhã.
Foi aí que aconteceu:
Juro!
Juro que saí de mim e me vi de longe; confundi-me com a minha mãe, há uns anos.
Com as conversas que ouço por aí ultimamente, ainda me convenço que reencarnei na vida e no tempo da minha mãe.
Quiquera
É tão estranhamente pacificador pensar que, enquanto eu adormeço
Alguém trabalha;
Um pianista treina apaixonadamente no seu piano;
Um casal faz amor ternamente;
Alguém chora um desgosto de amor;
Outro percorre os silêncios abandonados de uma qualquer cidade;
Um bebé chora ao sair do ventre da sua mãe;
Alguém morre;
Alguém desiste de sentir.
E a unir-nos apenas este momento que termina no piscar dos meus olhos, que se fecham lenta e teimosamente
Por um instante? Para sempre?
Sem o saber, escolho, na mesma, adormecer.
Quiquera
A partir de uma certa hora, o edifício parece adormecido.
Como companhia tenho o zumbido do ar condicionado. O som de uma porta que se abre e fecha, lembrando que, afinal, não me encontro só.
As luzes desligadas automaticamente pela falta de movimento, acendem-se repentinamente, ao som dos passos do vigilante.
Fico sozinha. Atirada para um poço de pensamentos que me submergem.
Balanço-me na cadeira, pouco preparada para confortos nocturnos, e enfrento-me.
Revejo o meu passado, enquanto penso o futuro.
Será possível que a vida seja só isto?
Por vezes penso que ando a desperdiçar tempo. Que sempre andei.
Não que não tenha feito coisas que me deram prazer e orgulho. Não.
Mas não as fiz por mim, na grande maioria das vezes. Fiz por amor. Por amizade. Por necessidade.
Agora, imprime-se em mim a sensação de que já vou tarde. A certeza de não te encontrar de novo aqui. Nunca mais.
O tempo. O tempo que parte. Que passa lento nos momentos de silêncio e tão rápido quando o vivemos.
Que não controlamos. Nem mesmo quando o sonhamos.
Quiquera